segunda-feira, 19 de março de 2012

Como nascem os rituais?


Um homem de roupa comprida entra e se dirige ao altar. Atrás dele, a imagem de alguém semi-nu, pregado a uma cruz, em expressão de visível sofrimento. Todos se levantam à entrada do homem de roupa comprida. Algumas palavras. Todos se sentam novamente. Palavras-certeza são lançadas pelo homem em pé àqueles que estão sentados. Estes respondem. Em algum momento haverá vinho, uma espécie de pão, pessoas em fila, joelhos ao chão. Há um pacto de respeito, há uma liturgia em curso.

Poderiam ser rapazes falantes de um complexo idioma me pedindo licença numa tarde de domingo para ajoelharem-se num tapete em meio à sala de estar, tocando em seguida suas testas no chão. (Neste pequeno tapete há uma bússola, que aponta a direção certa para suas palavras). Poderiam ser mulheres de um lado e homens de outro, yabás, dendê, atabaques. Poderiam ser pernas cruzadas por sobre os joelhos e mãos pousadas com as palmas para cima ou uma grande roda com pessoas lançando para cima um homem sentado numa cadeira ou flores e frutos oferecidos para um altar ou banhos em um rio sagrado. Fosse o que fosse, compreendêssemos ou não a língua ali entoada, nós saberíamos reconhecer: há um ritual em curso.

Mas, como nascem os rituais?

(...)

Ainda em 2011 (o ano que parecia que NUNCA ia acabar), recém-chegada das terras do frio, atendi ao chamado de uma amiga muito querida, que me convidara para assistir Fogueira. Neste espetáculo/experimentocênico/vivência/momento (já superamos esta querela, confere?! rsrsr), 04 mulheres nos posicionam em círculo para compartilharmos de um momento de mergulho no feminino. Feminas-fêmeas, mulheres passeando por histórias, sensações, sonoridades, movimentação vigorosa e construindo ali, em tempo real e de forma absolutamente escancarada, um universo de simbologias.

Se havia a possibilidade de reconhecer inúmeros elementos emprestados de culturas tantas, o que mais me enlouquecia (e provocava) era a total possibilidade de dessacralizar aquelas ações. Porque ali havia um ritual em curso, eu sei, mesmo sem ícones, mesmo sem padres, sem rabás, mesmo com uma iaô-homem-ao-tambor, mesmo com o espaço para o non sense, mesmo sem espaço para heresia, mesmo sem o silêncio. Havia ali uma loucura de entrega e delírio e delírio e entrega de novo. Mas não havia sinal dessa espécie de delírio pronto que às vezes encontramos nos rituais inventados, ou do grito oco, ou rastro de ensaio prévio que garantiria um protocolo... havia sim aquela espécie de grito-carne que se amarra lá num canto do juízo ancestral de cada um. Eu não posso saber onde aqueles gestos se amarravam nos demais, não poderia refazer o traçado do laço de ação que se amarrava à cada memória, mas mesmo sem rotas prontas os meus nós de lembrança recebiam fortes puxões por conta das histórias daquelas quatro mulheres. Como filho que nasce perfeito minutos depois de ser fecundado, o que elas produziam ali em meio à loucura do instante era feito de certeza e não de errância. Era ancestral, como pode?! E me acertava fundo, flecha de caçador, ponto vital que paralisa e não mata. Mas sangra.

Não sei como aprenderam a manejar flechas com tanta segurança, não saberia nem arriscar um palpite. Experimentações criativas em uma sala de ensaio nos levam a resultados similares, Baco pode conduzir nossas mãos para o tiro certeiro no espírito do outro, podemos alcançar lugares parecidos via procedimentos distintos; eu sei de tudo isso. Mas o que havia ali não eram apenas bacantes (ou atrizes) mas toda espécie de autoridades pagãs e religiosas falando num idioma único. Como se fossem canibais, pariam ali bem na na nossa frente rituais novinhos em folha que gestavam escondidos no ventre e que naquela noite, talvez por diversão talvez por exibicionismo, achavam por bem trazer à luz.

Eu aprendi que os rituais são fruto de tradições que, ao longo do tempo, cristalizam interpretações do mundo por meio de procedimentos repetíveis. Acessá-los é reafirmar as certezas daquelas conjecturas anteriores a nós, é reproduzir a voz de outros aos quais nós sucedemos. Não sabia no entanto que poderiam haver rituais-happening, rituais-pop up, rituais-deixa-vir... E não falo dos desdobramentos das ações ali realizadas e sim dos procedimentos, que não poderiam ser fruto da repetição porque eram fruto do instante. Eu não sabia que poderia haver aquilo, daquele jeito, naquele lugar. Se os outros sabiam, que se riam de minha ingenuidade: mas nunca imaginara desejo-gozo-gestação-parto caberem unidos num piscar de olhos meu.

Não sei como nascem os rituais, mas ali entendi que nem sempre eles provêm de um momento distante, desses que a memória nem mais alcança. Eu queria entender, mas respostas acadêmicas não hão de me satisfazer. Não a mim que, tomada pelo desejo de segurar um pouquinho aquele ser que nascia no centro do círculo, me entreguei ao grito, ao giro, aos pés molhados, aos ovos arremessados no chão (obrigada todo.dia.e.sempre por aquela epifânia no 2 de Julho, Rai querida...), à borra de café, ao desequilíbrio. Respostas assépticas não poderiam me satisfazer, pelo menos não por um bom tempo. Pelo menos até que a imagem daquelas moças-sacerdotisas me deixem em paz por completo.

Meus pés ainda estão molhados. Meu juízo ainda tem cheiro de ovos quebrados. Estou por ora entregue ao delírio. Femina-fêmea, me lanço aos meus rituais cotidianos do não saber e tanto buscar.

(...)

E vamo que vamo!

Texto de Isabela Silveira para Raiça Bomfim, Ci Moura, Liliana Matos, Camila Sarno e Daniel Guerra (a melhor iaô de todos os tempos ever!), sobre Fogueira.
De: Núcleo VAGAPARA
Para: Alvenaria

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